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Trote (Pinduca F68)
26/08/2015 - Por marcio joão scaléaAtenção: Os textos e artigos reproduzidos nesta seção são de responsabilidade dos autores. O conteúdo publicado não reflete, necessariamente, a opinião da ADEALQ.

Primeiro mês de aulas, período do trote, careca lustrosa,
"bicho novo", conforme a molecada nativa gritava em coro atrás dos coitados. Só
quem passou por essa experiência consegue avaliar o medo que ia tomando conta
do bicho, logo que a Viação Piracicabana saía de Santa Bárbara D"Oeste. Ao
passar por Tupi o medo já era pavor, olhadas sucessivas para a estrada, a ver
se não havia nenhum veterano seguindo o ônibus, para pegar quem saltasse antes
da rodoviária. Na baixada do Piracicamirim, sacola na mão, ônibus parando
rapidamente antes do DER, bichos saltando e correndo, trôpegos por causa dos
sapatos sem cordão, enveredando pela Rua do Trabalho. Na sexta feira, caminho
inverso : caminhada desconfiada pela Rua do Trabalho até a rodovia, de onde o Universitário
seguia por alguns quilômetros para esperar o ônibus. Nem importava qual, podia
ser o da AVA, para Campinas ou o de São Paulo, o essencial era sair dali o mais
rápido possível. Naquele dia foi o de São Paulo que passou, e o Universitário
subiu aliviado, agradecendo ao motorista, quando ouviu o temido chamado :
- Bicho, vem cá. Achou que era esperto, que ia escapar
tranqüilo, não é? Se apresente.
Ao que o Universitário, humildemente de joelhos e cabeça
baixa se apresenta ao veterano, terror dos calouros, o famoso Periquito.
- Bicho Pinduca, doutor. De São Paulo, Capital.
- Pior ainda, não gosto de bicho de São Paulo, são todos uns
"peles finas" (referindo-se ao fato de que muitos vestibulandos de São Paulo
não tinham o comportamento rude de um típico sertanejo, estereótipo do agrônomo
de então). Você vai sentado no chão até o fim da viagem, e na semana que vem a
gente conversa lá na Soroca (república onde o veterano morava), você vai ver o
que é trote duro! Pelo menos o nome está perfeito, nunca vi ninguém mais
parecido com o Pinduca (gargalhada geral no ônibus).
Ele se referia ao personagem de histórias em quadrinhos, que
originara o nome do Universitário, que resignou-se à sorte : melhor viajar
sentado no chão do que não viajar. Semana que vem é semana que vem.
E veio a semana, e outra, e outra, bicho Pinduca e veterano
Periquito se cruzavam aqui e ali, mas as circunstâncias favoreceram o
Universitário, que acabou sempre escapando do trote.
Dia de doar sangue, ônibus da Colsan estacionado na Escola,
quem doasse sangue ganhava anistia e podia ir para casa sem medo de trote. O
Universitário, na fila de doação, viu quando chegou o maior terror dos bichos
daquele ano, o veterano Gerôncio, autor de trotes dolorosos e cruéis, e
estremeceu. Surpreendentemente, Gerôncio estava até delicado aquela tarde,
exortando os bichos a doarem sangue e elogiando os que ali estavam na fila. Só
que fiscalizava um a um, na saída do ônibus, para ver se havia mesmo doado o
sangue. Chegou a vez do Universitário, que dentro do ônibus respondia às
perguntas da enfermeira que fazia o seu cadastro : nome, endereço, identidade,
data de nascimento. Ela mandou repetir a data de nascimento.
- 19 de junho de 1946.
- Não pode. Você não tem dezoito anos, não pode doar sangue.
O próximo, por favor.
O céu desabou sobre sua cabeça : sem doar sangue, seria a
única presa daquela tarde para o Gerôncio, trote pesado até de madrugada,
rastejar, mamar na cadela mascote da república, banho de lama, coquetel
molotov, bicho a milanesa, sem falar na tortura psicológica, o propalado tanque
das piranhas!
- Dona, eu TENHO que doar sangue, se eu sair sem ter doado
estou frito, o veterano me mata no trote.
- Não posso fazer nada, é a lei. O próximo...
- Dona, pelo amor de Deus, pelo menos me cole aquele
esparadrapozinho aqui no braço, quem sabe assim consigo escapar.
O estado do Universitário era tão deplorável que ela se
comoveu e concordou em colar o esparadrapo na dobra do braço dele. Que
conseguiu fazer um pouquinho de hora dentro do ônibus para sair pálido de
pavor, frente a frente com o Gerôncio.
- Bicho, você saiu muito rápido, será que doou mesmo sangue?
Deixa ver o braço.
Manga arregaçada, esparadrapo à mostra, Gerôncio completou :
- Parabéns, bicho. Vai logo embora, você está muito pálido,
quer que eu te leve para casa?
- Muito obrigado Doutor, eu vou indo, devagarinho, só estou
um pouco fraco.
Marcio Joao Scaléa (Pinduca F68) é Engenheiro Agrônomo ex morador da Republica Mosteiro